Leia se tiver estômago

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Um conto beat de Tonho da Lua

“Não é a Rutinha…”

Conheci Rutinha no bar. Gostava daquele em específico. Frequentavam lá os que tinha como amigos à época. Depois vieram a se provar colegas de bar, no máximo, mas o que mais iria querer aquele pedaço de merda que eu era? Nada me fazia sentir que estava vivo naquela época maldita. Havia queimado meus sonhos e deixado o que sobrou deles junto com as bitucas nos cinzeiros fedidos da vida. Mas vamos falar de Rutinha.
Ela nem era minha primeira opção naquele dia. A que o era me deixou esperando uns dias depois (hahaha). Olhei pros olhos de cabrito de Rutinha uma meia-dúzia de vezes, daqueles olhos que não passam nada além de insanidade. Também não são minha primeira opção, mas tudo bem.
Não vi mais Rutinha por um mês senão pela internet. É incrível como podemos platonizar tanto em dois meses; ainda mais alguém que passava 80% do dia em frente da tela como eu.
Nos falamos pela primeira vez em outro bar, com o mesmo espectro de pessoas em volta. Ela já me menosprezou na primeira frase. Eu devia ter seguido meu instinto e mandado ir se foder. Era o certo. Era o que eu faria em situações como aquela. Mas foi a primeira de muitas vezes que me neguei pra tentar uma vida. Hoje isso não se repetiria.
Daí em diante foi uma diarreia de emoções. Nos falávamos todos os dias, começamos a ficar, ela me contou que um amigo (daquele grupelho, o que mais tinha apreço) era apaixonado por ela, arrumei emprego, a camisinha estourou, após três tentativas aconteceu o aborto, sofri um acidente, o Corinthians ganhou a Libertadores e começamos a namorar.
Nosso início de namoro se deu em mais uma situação de negação do meu eu. Quando começamos a nos envolver, pedi exclusividade, ela topou. Ela quebrou esse acordo e em vez de deixar tudo pra lá, eu a pedi em namoro trucando 12: “ou namora, ou não me vê mais”. Ela aceitou (infelizmente).
Rolou, então, um festival de mostrar poder, da parte dela, e de baixar a cabeça, da minha. Ela ainda deve dizer por aí que arrumei emprego, parei de fumar, emagreci e mais um monte de coisas por ela. Deve se pintar como redentora na minha vida. E deve ser por isso que ela não entende como eu posso viver sem ela. Mas chegaremos lá.
Acho que foi quando conheci o primeiro anjo com quem tive contato nessa vida que decidi começar a viver de verdade. Ela tinha AQUELE brilho nos olhos.
Foi ela quem me abriu os olhos para Rutinha. Não que eu falasse dessa pessoa pra ela, aliás, eu esquecia de Rutinha. Rutinha se fazia mostrar superior a mim sempre que possível. “A gente só namora porque EU quero”. Está certo que para isso precisam as duas pessoas quererem, mas qual a necessidade de afirmar a
cada meia-hora? Essa anja me tratava como igual e se interessava pelo que eu dizia. Uma noite eu sonhei com ela. Acordei decidido a terminar com Rutinha e me declarar. Ela (anja) anunciou que encontrou um carinha de quem gostava.
Comecei a não aceitar tanto ser tratado como um cão por Rutinha. Comecei a não aceitar os programas reacionários que passavam em sua TV. Comecei a não aceitar quando ela falava da vestimenta alheia, invertendo tudo pra ela. Comecei a não aceitar o modo rude como ela tratava a família. E me emputecia de verdade a cada “humilhadinha” que ela me dava.
Conheci então o segundo anjo. Esse um arcanjo caído, desses que comem torresmo peludo de ontem e ovo colorido no bar do Zé com cerveja de procedência duvidosa.
Eu estava no auge do meu descontentamento com Rutinha. O que me mantinha com ela eram as discussões políticas com o cunhado, os gatinhos recém- adotados, o modo igualitário como sua família me tratava e só. Comentei com o arcanjo sobre uma conhecida em comum e o modo como ela me atraía, pois ele arrotou de supetão: “se você está pensando em outra, não seria melhor terminar?”.
Num primeiro momento achei uma ideia insana, num segundo, tentadora. Por fim, aceitei como correta, por mim e por Rutinha. Tentei uma vez, ela tentou outra. Na terceira terminamos.
Foi uma libertação na época. Não só dos abusos de Rutinha, mas das amarras que eu mesmo havia colocado em mim. Estava pronto para viver, para ser livre, para fazer o que eu bem quisesse.
Voltei para minhas músicas desqualificadas para pessoas desqualificadas em bares desqualificados. Conheci meninas gente boa demais (nesse ponto, não sei se realmente o são ou se é o efeito rebote de ter estado com uma pessoa que me fazia mal. Mas hoje penso com muito carinho nelas e torço por elas mesmo bem afastado).
Fundei e afundei uma banda, fundei outra e hoje ela é uma das maiores alegrias que eu tenho.
“Não é Rutinha…”
Apesar do fim, eu nutria certa síndrome de Estocolmo por Rutinha. Desejava-lhe o bem e até direcionei amigos para conversar, no sentido de ajudá-la com o término.
Acontece que eu estava conhecendo pessoas, e deixei claro isso pra ela, numa tentativa de fazê-la se afastar. Contudo, ela queria se fazer presente na minha vida.
Aconteceu, em certa tarde, de eu estar em um bar. Nesse bar, trabalhava certa garçonete. Essa garçonete é UM PITEL de pessoa: livre, independente, madura, linda… e acabamos ficando (mas não na tarde em questão). Nessa tarde eu
sabia que Rutinha iria ao bar e declarei “baby, hoje minha ex vem. Eu tenho esse acordo idiota...”. Ela me entendeu. Mas Rutinha, não. Rutinha viu coisas que não aconteceram e eu me recordei do motivo do término.
Não aceitaria mais ser subjulgado, não mais. Agora era meu tempo, eu era um Goonie no subterrâneo. Claro que nunca teria explicado a Rutinha isso, e o papo acabou com um “Faz o que quiser da sua vida. Não me dirija mais a porra da palavra”.
Desde então Rutinha passou a parecer uma gêmea do mal. Pretensamente se engajou em lutas igualitárias. Não que isso seja ruim, mas nos tempos em que vivemos todos o fazem. E fazem sem base nenhuma, achando que subcelebridades “lacradoras” são alguma espécie de referência de luta.
Eu desfiz meu namoro, Rutinha desfez duas amizades que antes considerava inabaláveis. Confiaria a vida àquelas filhas da puta, mas descobri que elas nunca me entenderam como achei que entendiam. Uma pena pelo tempo e atenção perdidos com quem não merece.
Rutinha ficou amiga de uma ex minha. Mas essa é outra história que os anos de álcool corroeram. Só a citei pelo simples fato de ter havido diálogos pós-Rutinha nos quais ela se desentendeu comigo e nos quais ela se desculpou pelo desentendimento; Rutinha só sabe dos primeiros, ou finge.
Meses de libertinagem pós-Rutinha, já tinha botado a cabeça no lugar, já tinha fundado uma banda, já tinha tido problemas de saúde, já tinha fechado semanas fechando bares, era a hora de dar uma sossegada pra variar. Encontrei uma garota com quem o papo nunca acabava, e isso é o essencial fora os outros elementos.
Rutinha passou a falar merda dela por aí, sabe-se lá por quê. Sabe-se lá por que concluiu que tanto essa garota quanto o Tonho da Lua aqui vivemos em função dela.
Hoje Rutinha tem tantas acusações contra mim que eu já perdi a conta. Acho que o fato de eu nunca ter ligado deve mexer com ela.
Entrei com medidas judiciais? Claro. Hoje em dia, todos somos expostos e nunca se sabe quem vai ter qual entendimento. Só queria que isso parasse.
Rutinha me forçou a me afastar de lugares e pessoas por causa dessas acusações. Acho que foi o maior acerto da vida dela, e é a única coisa por que sou grato.
Hoje estou no meu 13º ano de cárcere, pois Rutinha conseguiu finalmente me incriminar plantando provas. A cada dia de visita, tenho que negar aos guardas da prisão a permissão para Rutinha me ver. Ela conseguiu o que queria.

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